quarta-feira, 10 de novembro de 2010

"O maior perigo do terceiro milénio"

Em Junho de 1836, Nathan Rothschild viajou de Londres a Frankfurt a fim de assistir ao casamento do filho Lionel com a sua sobrinha (Charlotte, prima de Lionel) e discutir com os irmãos a entrada dos próprios filhos no negócio da família. Nathan devia ser o homem mais rico do mundo, pelo menos em activos de curtíssimo prazo. Naturalmente, podia permitir-se tudo o que desejasse.
Então com 59 anos, Nathan gozava de boa saúde, embora fosse um tanto corpulento. Era uma fonte de energia, incansável na sua devoção ao trabalho e de temperamento inflexível. Quando saiu de Londres, porém, estava com uma inflamação na região lombar. (Um médico alemão diagnosticou-lhe um furúnculo, mas pode ter sido um abcesso.) Apesar do tratamento, a pústula infectou e tornou-se bastante dolorosa. Não fez diferença alguma: Nathan levantou-se do leito de enfermo e compareceu ao casamento. Tivesse ele ficado na cama, e os esponsais ter-se-iam celebrado no hotel. Apesar de todo o sofrimento, Nathan continuou a tratar dos negócios, ditando instruções à mulher. Nesse espaço de tempo, o grande Dr. Travers foi chamado de Londres e, quando concluiu que não podia solucionar o problema, convocou-se um eminente cirurgião alemão, presumivelmente para abrir e limpar a ferida. De nada adiantou: o veneno espalhou-se e Nathan faleceu a 28 de Julho de 1836. Dizem que um pombo-correio de Rothschild levou a mensagem de volta a Londres: II est mort.
Nathan Rothschild morreu provavelmente de uma septicemia causada por estafilococo ou estreptococo — a que se costumava dar o nome de envenenamento do sangue. Na ausência de informação mais detalhada, é difícil dizer se a causa da morte teria sido o furúnculo (abcesso) ou uma contaminação secundária proveniente dos instrumentos cirúrgicos. Isto aconteceu antes de aparecer a teoria microbiana e, por conseguinte, antes de qualquer noção da importância da higiene e da limpeza. Não havia então qualquer bactericida, muito menos antibióticos. E assim morreu o homem que podia comprar fosse o que fosse, vítima de uma infecção banal, facilmente curável hoje em dia para quem tiver condições de procurar um médico, um hospital ou até mesmo um farmacêutico.
A medicina registou enormes avanços desde o tempo de Nathan Rothschild. Mas medicamentos melhores e mais eficazes — o tratamento de doenças e a recuperação de ferimentos — são apenas parte da história. O aumento considerável da expectativa de vida nos dias de hoje deve-se mais às conquistas na área preventiva e à disseminação dos hábitos de higiene do que a melhores remédios. Água limpa e rápida remoção de lixo, aliadas a mais asseio pessoal, marcaram a diferença. Durante muito tempo, o grande assassino foi a infecção gastrointestinal, transmitida dos dejectos às mãos, destas aos alimentos e ao aparelho digestivo; e esse inimigo invisível, mas letal, omnipresente, era reforçado de tempos a tempos por micróbios epidêmicos, como o vibrião da cólera. O melhor meio de transmissão era a latrina comum, onde o contacto com dejectos era favorecido pela inexistência de papel higiénico e a falta de roupas interiores laváveis. Quem vive com roupas de lã sem serem lavadas — e as lãs não são boas de lavar — sentirá uma vontade natural de se coçar. Por isso, as mãos estavam sempre sujas e o maior erro era não as lavar antes de comer. Esse era o motivo por que os grupos religiosos que aconselhavam tal hábito — judeus, muçulmanos — tinham uma taxa reduzida de doenças e de mortalidade, o que nem sempre lhes era vantajoso. As pessoas eram facilmente persuadidas de que, se morriam menos judeus, era por terem envenenado os poços dos cristãos.
A resposta a esta questão foi encontrada, não na mudança da crença ou doutrina religiosa, mas na inovação industrial. O principal produto da nova tecnologia que conhecemos como a revolução industrial foi o algodão barato e lavável; e, paralelamente, a produção em massa de sabão feito de óleos vegetais. Pela primeira vez, o homem comum podia dar-se ao luxo de adquirir roupa interior, outrora conhecida como «roupa branca», porque era feita de linho, o tecido lavável que as pessoas abastadas usavam junto à pele. O indivíduo podia lavar-se com sabão, embora o hábito de tomar banho em excesso fosse visto como um sinal de menos asseio. Por que razão as pessoas limpas haviam de se lavar com tanta frequência? Não interessa. A higiene pessoal mudou tão drasticamente que as pessoas comuns, dos finais do século XIX e início do século XX, viviam em geral com maior asseio do que os reis e rainhas de há um século.
A terceira razão para o declínio da doença e da morte foi a melhor nutrição. Isso ficou a dever-se muito ao crescimento da oferta de alimentos e mais ainda à maior rapidez e eficiência nos transportes. As grandes fomes colectivas, que em geral resultavam de uma escassez local, tornaram-se mais raras; a dieta ficou mais variada e mais rica em proteína animal. Essas mudanças traduziram-se, entre outras coisas, em estaturas humanas mais altas e robustas. Este processo foi muito mais lento do que o desenvolvimento das condições médicas e higiénicas que foram instituídas de cima para baixo, principalmente porque dependeu de hábitos e gostos, tal como dos rendimentos. Numa época relativamente próxima, como a da primeira guerra mundial, os turcos que lutavam contra a força expedicionária britânica em Galipoli ficaram impressionados com a diferença de estatura entre os soldados da Austrália e da Nova Zelândia, alimentados com bifes e lombo de carneiro, e os jovens franzinos das cidades industriais britânicas. E quem acompanhar as populações imigrantes de países pobres para países ricos observará que os filhos são mais altos e mais bem estruturados que os seus pais.
A partir desses benefícios, a expectativa de vida disparou, ao mesmo tempo que se estreitaram as diferenças entre ricos e pobres. As principais causas de morte adulta já não eram mais as infecções, especialmente a infecção gastrointestinal. Mas sim as debilitantes enfermidades da velhice. Essas conquistas foram maiores nas nações industriais ricas, com assistência médica para todos, mas até mesmo alguns países mais pobres beneficiaram de resultados impressionantes.
Os progressos na medicina e na higiene exemplificam um fenómeno muito mais vasto: as vantagens decorrentes da aplicação do conhecimento e da ciência à tecnologia. O que nos ajuda a ter esperança quanto aos problemas que ensombram o presente e o futuro. Encorajam-nos até a alimentar fantasias de vida eterna ou, melhor ainda, de juventude eterna.
Essas fantasias, portanto, quando baseadas na ciência, ou seja, na realidade, constituem o sonho dos ricos e afortunados. Os benefícios do saber e do conhecimento não foram equitativamente distribuídos, nem mesmo nas nações ricas. Vivemos num mundo de desigualdade e diversidade. Mundo esse que está dividido, grosso modo, em três espécies de nações: aquelas em que as pessoas gastam rios de dinheiro para não aumentar de peso, aquelas em que as pessoas comem para viver e aquelas cuja população não sabe de onde virá a próxima refeição. Essas diferenças são acompanhadas de acentuados contrastes nas taxas de doença e expectativa de vida. As pessoas das nações ricas preocupam-se com a velhice, que cada vez se prolonga mais. Fazem exercícios para manter a forma, controlam o colesterol, ocupam o seu tempo com a televisão, o telefone e os jogos e consolam-se com eufemismos do género «os anos dourados» e a «terceira idade». Ser «jovem» é bom, ser «velho» é degradante e problemático. Enquanto isso, as pessoas de países pobres tentam manter-se vivas — não precisam de se preocupar com o colesterol nem com o entupimento das artérias, em parte pela dieta frugal, em parte por morrerem cedo. Procuram assegurar uma velhice tranquila, se lá chegarem, por meio de montes de filhos, que crescerão com um desejável sentimento de obrigação filial.
A antiga divisão do mundo em dois blocos de poder, Leste e Oeste, já não existe. Hoje, o grande desafio e ameaça é o abismo em matéria de riqueza e saúde que separa ricos e pobres. Esse abismo é frequentemente descrito em termos de Norte e Sul, porque a divisão é geográfica; embora uma indicação mais correcta fosse a de o Ocidente e o Resto, porque a divisão também é histórica. Esse é o maior problema e o maior perigo com que se defronta o mundo do terceiro milénio.
David Landes

Sem comentários:

Enviar um comentário