segunda-feira, 30 de agosto de 2010

Dos efeitos às causas

Como se sabe, a taxa de pobreza média da União Europeia tem-se mantido mais ou menos estável, com pequenas variações. No caso português, essa taxa revela um ligeiro decréscimo no decurso dos últimos dez anos, se bem que a um ritmo manifestamente insatisfatório. Se é certo que os países cm vias de desenvolvimento apresentam taxas superiores à registada entre nós, não há razão para que a taxa de pobreza se situasse, no país, nos 18 por cento cm 2007 [valores referidos a 2007, desconhecendo-se o efeito da crise], nem para que o ritmo a que a taxa tem vindo a decrescer fosse tão lento. O que estas duas realidades revelam é que os esforços, que são muitos, realizados entre nós, quer por serviços públicos quer por instituições privadas, se bem que indiscutivelmente meritórios e indispensáveis, ficam muito aquém do necessário para uma redução substancial da pobreza em Portugal. Na sua maior parte, essas acções e políticas contribuem para minorar as carências, a começar pelas alimentares, mas não atingem as causas estruturais da pobreza e da exclusão.

Há que reconhecer que, pelo menos a curto prazo, existe um conflito entre os interesses dos pobres e os dos não pobres (em particular, dos ricos). É este conflito que as políticas e acções contra a pobreza não reconhecem ou, reconhecendo, optam por evitar o confronto. Nestas condições, tais acções e políticas limitam-se a abordar aspectos periféricos e superficiais do problema. Atenuam os efeitos, mas não atingem as causas dos problemas.
(da Mensagem da C.N. Justiça e Paz para a Quaresma de 2010)

segunda-feira, 23 de agosto de 2010

Extracto de um monólogo de Wallace Shawn

"Portanto, nós temos tudo, mas há uma dificuldade que não conseguimos mesmo ultrapassar, uma maldição: não conseguimos escapar à nossa ligação com os pobres.
Nós precisamos dos pobres. Sem os pobres para apanharem a fruta das árvores, para tratarem do excremento debaixo da terra, para darem banho aos nossos bebés no dia em que eles nascem, nós não poderíamos existir. Sem os pobres para fazerem o trabalho horrível, nós gastaríamos as nossas vidas a fazer o trabalho horrível. Se os pobres não fossem pobres, se os pobres fossem pagos da maneira que nós somos pagos, nós não nos poderíamos dar ao luxo de comprar uma maçã, uma camisa, não nos poderíamos dar ao luxo de fazer uma viagem, passar uma noite numa pousada numa cidade próxima. Mas o horror é que os pobres crescem por todo o lado, como musgo, como erva. E nós nunca podemos esquecer o tempo em que eles eram donos da terra. Nunca podemos esquecer a morte das famílias deles, aquelas juras de vingança gritadas tão alto naquelas salas cheias de sangue e tripas. E os pobres não esquecem. Alimentam-se da raiva. Comem raiva. Querem erguer-se e acabar connosco, limpar-nos da superfície da Terra o mais rápido que puderem.

E portanto, no nosso mundo congelado, no nosso mundo calado, nós temos de falar com os pobres. Falar, ouvir, clarificar, explicar. Eles querem uma mudança. E portanto nós dizemos, Sim. Mudança. Mas não uma mudança violenta. Nada de roubo, nada de revolta, nada de vingança. Em vez disso, dêem ouvidos à ideia de uma mudança gradual. Uma mudança que vos ajude, mas que não nos afecte. Moralidade. Lei. Mudança gradual. Nós explicamos isso tudo: um contrato com duas partes: nós damo-vos coisas, muitas coisas, mas em troca vocês têm de aceitar que não têm direito a simplesmente tirar aquilo que querem. Nós vamos dar-vos coisas maravilhosas. Sentem-se, esperem, não tentem agarrar. – A coisa mais importante é ter paciência, esperar. Nós vamos dar-vos muito muito mais do que vocês conseguem ganhar agora, mas há certas coisas que têm de acontecer primeiro — são estas as coisas pelas quais temos de esperar. Primeiro, temos de fazer mais e produzir mais, para que haja mais disponível para nós darmos. De outra forma, se nós vos damos mais, ficamos com menos. Quando fizermos mais e produzirmos mais, todos podemos ter mais - parte do aumento pode ir para vocês. Mas a outra coisa é, assim que haja mais, temos de garantir que a moralidade prevalece. A moralidade é a chave. O ano passado, fizemos mais e produzimos mais, mas não vos demos mais. Todo o aumento ficou para nós. Isso foi errado. Aconteceu a mesma coisa no ano anterior, e no ano antes disso. Temos de convencer toda a gente a aceitar a moralidade e, no próximo ano, dar-vos parte do aumento.

Portanto temos todos de esperar. "


(Wallace Shawn, A Febre, cit. por Jacinto Lucas Pires, col. Dar voz aos pobres para erradicar a pobreza, CNJP)

sexta-feira, 20 de agosto de 2010

Da noção de "Exclusão Social"

Exclusão social: é entendida como um processo através do qual algumas pessoas são atiradas para a periferia da sociedade. A exclusão impede-as de participar plenamente na vida social devido à pobreza, à falta de competências de base e à falta de possibilidades de aprendizagem ao longo da vida ou devido a alguma discriminação. Este processo afasta-as das possibilidades de rendimento e educação, assim como de actividades sociais e comunitárias. Essas pessoas possuem acesso muito restrito ao poder e aos organismos de decisão e sentem-se incapazes de influenciar as decisões que afectam a sua vida quotidiana. (Tradução do Relatório Conjunto Sobre Inclusão Social, COM 2003, 773 Final). (Cit por http://www.2010combateapobreza.pt/conteudo.asp?tit=16)

Exclusão Social: "grupos humanos que não têm acesso a bens, serviços e meios de produção (uso, controlo e propriedade) que permitem a satisfação das necessidades básicas nas dimensões económica, social, cultural e afectiva." (Domingos Caeiro).

"Entende-se por exclusão social as formas pelas quais os indivíduos podem ser afastados do pleno desenvolvimento na sociedade". (Giddens)

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Explicar a pobreza

AS duas grandes leituras sociológicas da pobreza descritas por A. Giddens

"As explicações da pobreza podem ser agrupadas em duas categorias principais: as teorias que consideram os indivíduos pobres responsáveis pela sua própria pobreza, e as teorias que consideram a pobreza como produzida e reproduzida pelas forças estruturais da sociedade. Estas abordagens opostas são, por vezes, descritas como teoria da “culpabilização da vítima” e teoria da “culpabilização do sistema”, respectivamente. Iremos examinar brevemente cada uma das mesmas.

Existe uma longa história de atitudes que responsabilizam os pobres pela sua posição desprivilegiada. Os esforços iniciais para atender aos efeitos da pobreza, como as Casas dos Pobres do século XIX, estavam enraizados na crença de que a pobreza era o resultado de um desajustamento ou patologia dos indivíduos. Os pobres eram vistos como os incapazes – devido à falta de talento, à fraqueza física ou moral, à ausência de motivação, ou a capacidades abaixo da média – de vencer na sociedade. A posição social era tida como um reflexo do esforço ou talento da pes-soa: os que mereciam ser bem sucedidos, eram-no, enquanto os menos capazes estavam condenados a falhar. A existência de “vencedores” e de “vencidos” era vista como um facto da vida.
Tal concepção ressurgiu, a partir dos anos 70 e 80, à medida que a ênfase política colocada na actividade empresarial e a ambição individual recompensou aqueles que “obtiveram sucesso” na sociedade e responsabilizou aqueles que o não fizeram pelas circunstâncias em que se encontravam. Procuraram-se frequentemente explicações para a pobreza nos estilos de vida dos pobres, bem como nas atitudes e concepções que supostamente teriam adoptado. Oscar Lewis (1961) lançou uma das mais influentes destas teorias, argumentando que existe uma cultura da pobreza entre muitas pessoas pobres. De acordo com Lewis, a pobreza não é o resultado de inadequações individuais, mas de uma atmosfera social e cultural mais lata na qual as crianças pobres são socializadas. A cultura da pobreza é transmitida entre gerações porque os jovens desde cedo não vêem razão para aspirar a algo mais. Em vez disso, resignam-se finalisticamente a uma vida de empobrecimento.

A tese da cultura da pobreza teve um novo desenvolvimento pelo sociólogo americano Charles Murray. Os indivíduos que são pobres “sem culpa própria” – viúvos, órfãos ou incapacitados – fazem parte de uma categoria diferente daqueles que pertencem à cultura da dependência. Com este termo, Murray refere-se às pessoas pobres que dependem das provisões da segurança social em vez de entrarem no mercado de trabalho. Argumenta que o crescimento do estado-providência criou uma subcultura que mina a ambição pessoal e a capacidade de auto-ajuda. Em vez de se orientarem para o futuro e lutarem por uma vida melhor, os dependentes da segurança social contentam-se em aceitar as ajudas. O estado-providência, argumenta, corroeu o estímulo das pessoas para trabalharem (1984).

Teorias como estas parecem ecoar entre a população britânica. Os inquéritos mostram que a maioria dos britânicos consideram os pobres como responsáveis pela sua própria pobreza e desconfiam daqueles que vivem “à borla” das “ajudas do governo”. Muitos acreditam que as pessoas dependentes da segurança social poderiam encontrar trabalho se estivessem determinadas a fazê-lo. Porém, estas perspectivas não correspondem à realidade da pobreza. Cerca de um quarto daqueles que vivem na pobreza na Grã-Bretanha encontram-se a trabalhar, mas ganham muito pouco para conseguirem sair dos limites da pobreza. Dos restantes, a maioria são crianças com menos de 14 anos, adultos com 65 ou mais anos e os doentes ou incapacitados. Apesar da visão popular acerca dos níveis elevados de embustes à segurança social, menos de 1% das candidaturas envolvem pedidos fraudulentos – número muito menor do que no caso das declarações do imposto sobre o rendi-mento, onde se estima que mais de 10% dos impostos são perdidos devido à evasão ou falsas declarações.

A segunda abordagem para explicar a pobreza coloca a ênfase nos grandes processos sociais que produzem condições de pobreza difíceis de superar pelos indivíduos. De acordo com esta perspectiva, as forças estruturais de uma sociedade – factores como a classe, o género, a etnia, a posição ocupacional, a escolaridade e outros – moldam a forma como os recursos são distribuídos. Os investigadores que advogam explicações estruturais para a pobreza argumentam que a falta de ambição entre os pobres muitas vezes tomada como “cultura da dependência” é, de facto, uma consequência das suas situações condicionadas e não uma causa das mesmas. Defendem que a redução da pobreza não consiste apenas numa questão de mudança das concepções individuais, mas requer medidas políticas destinadas a distribuir de forma mais uniforme os rendimentos e os recursos pela sociedade. Abonos de família, um salário mínimo e níveis mínimos de rendimentos garantidos para as famílias são exemplos de medidas políticas que procuraram emendar as desigualdades sociais persistentes."


(A. Giddens, Sociologia)

segunda-feira, 9 de agosto de 2010

cogitações de um natural do Verde Pino

Neste mês de Agosto as nossas terras, aqui na zona do Verde Pino, enchem-se de filhos da terra que vêm descansar merecidas férias, provindos das migrações internas ou externas. Os filhos ainda vêm; os netos nem tanto...: as memórias perdem-se; outros polos de atracção são bem mais sedutores que velhas recordações da infância dos pais, ou mesmo da própria.

"Homens bons da terra", forças vivas, igrejas, associações e autarquias, tentam atrair pessoas durante o verão: celebram as velhas romarias religiosas ou criam novas romarias laicas. Transformam ribeiras e regatos em piscinas de rara beleza ou investem em estruturas de lazer competitivas em qualquer mercado do mundo (basta lembrar a Praia das Rocas, em Castanheira de Pêra); recuperam os paladares dos avós e vencem concursos de gastronomia, ou repovoam as montanhas e os ribeiros das espécies que lhes eram próprias.

De máquina fotográfica numa mão e toalha de banho na outra, podemos perder-nos por estes recantos do Verde Pino, de Alvaiázere a Oliveira do Hospital, em dias e dias do mais puro prazer da convivência com a natureza e com as "boas gentes" destas terras.

Tudo isto é verdade. E, todavia, não conseguimos vender a nossa qualidade; e, todavia, continuamos a ser uma das zonas "economicamente mais deprimidas" de Portugal. As pessoas não se inclinam a vir até nós; e menos ainda a ficar... Pesem todas as ilusões, a potencial receita do turismo passa-nos ao lado.

O rebuliço de Agosto não nos pode enganar. Ele próprio, aliás, dá sinais de declínio... Os netos já não voltam... Há muito trabalho a fazer, por todos nós, para que a nossa grande qualidade natural (na natureza e das pessoas) se transforme em grande qualidade... de vida!

sexta-feira, 6 de agosto de 2010

les gens des baraques ou les immigrants portugais en 1960

Neste mês de Agosto, quando tantos emigrantes voltam até nós, vale a pena olhar um pouco lá para trás, para a década de 60, ver as condições de vida que os levaram a partir e ver modo como viveram e lutaram, num filme "les gens des baraques ou les emmigrants portugais en 1960", colocado nom youtube por "erasenocool". A história não se repete, ou repete-se?! A EMIGRAÇÃO continua, continua por causa da POBREZA, e sob muitos aspectos com contornos ainda mais complicados: instabilidade social, instabilidade do mercado de trabalho, sazonalidade...
A EMIGRAÇÃO é um sinal da pobreza de facto vivida.

quinta-feira, 5 de agosto de 2010

Criar igualdade pela prática desportiva local

Há uns anos atrás, alguém que reside na área do Projecto Verde Pino - pessoa certamente considerada rica no seu meio - falava do envolvimento dos seus filhos no desporto local, para afirmar quanto uma actividade deste tipo pode promover a igualdade e a solidariedade entre os filhos de famílias que aparecem socialmente como distintas.
No seu testemunho, o desporto prolongou junto dos seus filhos aquilo que a escola, por exemplo, cortou: a conviência diária e amiga com os colegas da infância, a colaboração em projectos comuns, a solidariedade de todos segundo as capacidades de cada um...
No cambate local à pobreza, vale a pena aprofundar esta ideia.

quarta-feira, 4 de agosto de 2010

Esperança e critérios de vida

A Comissão Diocesana Justiça e Paz de Coimbra publicou recentemente um texto sobre a crise actual, com o tema "Esperança e Critérios de Vida". A partir da Cáritas, entidade promotora do projecto Verde Pino, e a partir da realidade onde este Projecto se inscreve, realidade que reflecte a crise e as esperanças para a vencer, parece oportuno trazer aqui esse documento. É um texto longo. Mas as coisas profundas precisam de espaço e de tempo para serem lidas e julgadas. E este documento vale a pena ser lido e ser julgado, até a partir dos pressupostos cristãos de que parte. A pobreza não anda arredada dos problemas e das soluções aqui apontadas.

1. Vivemos dias marcados pela dúvida e pela incerteza, que afectam os indivíduos e as instituições e perturbam sobremaneira as relações sociais e económicas e as decisões políticas. Em face deste espectro, que amarga a existência e tolhe a razão, a CDJP (Comissão Diocesana Justiça e Paz) de Coimbra julga oportuna uma palavra de esperança, fundamentada na fé em Jesus de Nazaré, que centrou a sua mensagem no convertei os vossos critérios de vida (Mc 1,15), na capacidade de superar as crises, que marcaram a nossa História colectiva, e na força transformadora dos valores éticos por que pugnamos e que tantos reclamam como essenciais à vida em sociedade.
Reconhecemos que a presente situação mundial é complexa e grave, marcada por uma crise, mais estrutural do que conjuntural, e por uma globalização económica e financeira desregulada, que inverte a ordem dos valores, ao colocar os interesses económicos e a especulação acima da dignidade e dos direitos das pessoas, com efeitos perversos sobre sociedades, indivíduos e decisores políticos.
As sociedades em geral – e a ocidental em particular – vivem demasiado centradas em interesses imediatos e egoístas, com a consequente perda do sentido do bem comum e de referenciais éticos estruturantes. Parece prevalecer o comodismo de quem desiste de construir o futuro, conformando-se, como agora nos referiu Bento XVI, com uma dinâmica social que “absolutiza o presente, isolando-o do património cultural do passado e sem a intenção de delinear um futuro”. É uma cultura do efémero, permeável à publicidade manipuladora, à corrupção sob múltiplas formas, ao endividamento irresponsável.
Portugal, em concreto, é um país que soma a esta cultura um conjunto de deficiências preocupantes, entre as quais se destacam:
- situação periférica e escassos recursos naturais nem sempre aproveitados da melhor forma;
- fraco desenvolvimento económico;
- população envelhecida e acentuada queda da natalidade;
- débil vontade na procura de qualidade e excelência individual, institucional e colectiva
- com demorada aplicação da Justiça,
- com níveis preocupantes de iliteracia e insucesso na Escola,
- com falta de equidade no acesso aos cuidados de Saúde, apesar dos padrões de qualidade reconhecidos internacionalmente;
- assimetria económica (a maior da União Europeia) em que quase dois milhões de pobres contrastam com titulares de remunerações ou prémios exorbitantes, sem relação com resultados das empresas, reformas escandalosas, com curtíssimas carreiras contributivas, e outras mordomias e benefícios, fruto, em grande parte dos casos, de clientelismo político-partidário;
- problemas graves, persistentes e estruturais, ao nível do emprego e das condições de trabalho, que remetem um número preocupante de concidadãos para a exclusão.

Na génese desta situação encontram-se diversas razões, tais como:
- a inexistência de um projecto, ambicioso e inovador, para o desenvolvimento do país, que seja credível e mobilizador dos cidadãos na construção de novos paradigmas;
- a falta de lideranças credíveis empenhadas na prossecução dos princípios do Estado de Direito Social, sem submissão a conveniências eleitoralistas ou promoções pessoais;
- a existência de uma débil sociedade civil, demasiado acomodada nos seus “direitos” e reticente às mudanças;
- a incapacidade para alcançar consensos político-sociais suficientemente alargados, que possibilitem o empreendimento de reformas há muito diagnosticadas como essenciais para o desenvolvimento sustentado do país;
- o aproveitamento ineficiente dos fundos europeus e das comparticipações estatais e das oportunidades históricas que os mesmos constituíram;
- a conivência das elites financeiras que, displicentemente e escondendo a realidade, aliciaram os cidadãos com propostas de empréstimos ao consumo e nunca de poupanças,
- o desenvolvimento de uma economia paralela alimentada, por exemplo, por pequenos e grandes negócios que não pagam impostos ou pela conivência de quem não pede factura dos bens e serviços que compra,
- sintomas de uma corrupção sistémica que se estende desde os patamares mais elevados da administração até ao cidadão comum.
Acresce que a actual situação orçamental e o nível de endividamento ao estrangeiro são terreno fértil para crescente especulação financeira, o que coloca Portugal – a par com outros países – em graves dificuldades para alcançar maior credibilidade no concerto das nações e para conseguir empréstimos internacionais, a fim de fazer face ao pagamento da dívida e das despesas não cobertas pelas receitas fiscais. Basta lembrar que no Orçamento de Estado para 2010 as despesas dos juros eram já superiores a cinco mil milhões de euros.


2. A situação acima referida condicionou as medidas políticas, necessárias e urgentes, que são do conhecimento público. Reconhecemos que, num contexto de interdependência e de globalização, controlado pela especulação financeira, essas decisões se tornam cada vez mais difíceis e complexas, parecendo-nos indispensável que sejam acompanhadas de uma procura activa de consensos.
De facto, o esforço de equilíbrio das finanças públicas deve manter-se associado à correcção das grandes desigualdades na repartição da riqueza e do rendimento. Assim, é fundamental que o Estado cumpra o seu papel na regulação social, em particular no combate à pobreza e na protecção dos desempregados. Além disso, na reorganização das empresas e das instituições, do sector público e do sector privado, importa promover maior rendibilidade dos bens e serviços e melhorar o grau de eficiência e eficácia humana, económica e energética.
Por exigência do bem comum, compete ainda aos que mais ganham, podem e sabem estar à altura da solidariedade e das responsabilidades que podem e devem assumir.
Portanto, exige-se que, em todas as medidas, o direito do pobre seja sempre o primeiro a ser salvaguardado, evitando a deterioração da já difícil situação em que se encontram os mais fragilizados.


3. A CDJP deseja, neste momento de desalento e de dúvidas, trazer uma palavra de esperança, pois acredita que os portugueses, tal como têm feito ao longo da sua História, saberão superar as dificuldades e assumir os sacrifícios, fazendo valer as suas energias e potencialidades.
Em nome da esperança, somos chamados hoje a um novo esforço que impõe mudanças radicais, a nível pessoal e colectivo. O futuro está também nas nossas mãos, e isso exige a generalização de um ambiente social de comportamentos éticos, que deve assentar:
- numa forte consciência de que todos temos alguma responsabilidade na actual situação, pois, “é por demais fácil alijar sobre os outros a responsabilidade das injustiças se se não dá conta ao mesmo tempo de como se tem parte nelas e de como a conversão pessoal é algo necessário, primeiro que tudo o mais” (OA 48);
- em novos estilos de vida, que alterem hábitos consolidados de consumismo, de falta de cidadania, de degradação da Natureza, de modo a garantir um desenvolvimento sustentável e a manutenção da Terra habitável pelas gerações futuras;
- “numa justa liberdade perante os bens materiais” (FC 37), nomeadamente perante o dinheiro, um instrumento para a nossa qualidade de vida e não um deus que nos escraviza e aliena;
- na disponibilidade para acolher o outro como companheiro na construção da sociedade, sem o hostilizar ou recear como um concorrente, enriquecendo-nos mutuamente com as diversidades individuais e grupais;
- numa confiança responsável na solidariedade, cimento estruturante da coesão social, inerente a uma cidadania comprometida e interventiva;
- em formas novas de organizar a sociedade, fundadas no serviço ao bem comum, a começar pelas instituições, nacionais e internacionais, reguladoras dos mercados financeiros;
- na multiplicação de iniciativas inovadoras de quem acredita na nossa capacidade para encontrar soluções para grande parte das dificuldades que nos atingem;
- uma atenção séria para que os principais responsáveis da crise em que vivemos não sejam os primeiros beneficiários da mesma;
- na procura de um “desenvolvimento económico, social e político, autenticamente humano”, baseado no “princípio da gratuitidade como expressão de fraternidade” (CV 34).
Em nome da mesma esperança, decorrendo o Ano Europeu da Luta contra a Pobreza e a Exclusão Social e vivendo o único tempo da História em que temos recursos mais do que suficientes, é imperativo combater estereótipos e preconceitos colectivos sobre a pobreza e cuidar de todos os habitantes da Terra “sem privilegiar nem excluir ninguém” (CA 31), por exigência
- da promoção da dignidade inviolável de cada pessoa,
- do destino universal dos bens, que “Deus criou para uso de todos” (GS 69) e
- da indispensável coesão social, pacificadora e geradora de uma justa equidade.
Sabemos que uma das principais causas da pobreza é o desemprego. Por isso, urge tomar medidas adequadas para que o emprego se torne, como é de facto, o factor mais decisivo na inclusão. Efectivamente, como diz Bento XVI, “a exclusão do trabalho por muito tempo ou então uma prolongada dependência da assistência pública ou privada corroem a liberdade e a criatividade da pessoa e as suas relações familiares e sociais, causando enormes sofrimentos a nível psicológico e espiritual”. E continua, recordando “a todos, sobretudo aos governantes que estão empenhados a dar um perfil renovado aos sistemas económicos e sociais do mundo, que o primeiro capital a preservar e valorizar é o homem, a pessoa, na sua integridade: com efeito, o homem é o protagonista, o centro e o fim de toda a vida económico-social” (CV 25).
Neste contexto, é de condenar tanto quem contrata a recibo verde, com salários indignos, ou ilegalmente, como quem recusa propostas de emprego e continua a receber apoios sociais, bem como quem permanece “de baixa” sem estar doente.


4. A Comissão está convicta de que a crise, tendo sempre uma gravosa carga negativa, é ou pode ser uma oportunidade estimuladora de um mundo diferente, até porque na sociedade portuguesa há muitas pessoas e organizações que dão um testemunho de vida nesse sentido:
- cuidam fraternalmente dos outros, sobretudo dos mais frágeis, contribuindo activamente para a construção de uma sociedade mais justa e solidária,
- partilham gratuitamente saberes e competências técnicas e profissionais em apoio de pessoas e situações mais vulneráveis,
- acreditam na nossa capacidade de inovar e empenham-se em construir alternativas, por exemplo, reestruturando empresas ou ocupando novos nichos do mercado;
- assumem o compromisso de ser agentes de uma História comum e com o seu testemunho de vida estimulam colegas e amigos,
- persistem mesmo perante fracassos ou falta de resultados imediatos, muitas vezes servindo-se das dificuldades para descobrir caminhos novos.
O trabalho que temos pela frente começa no coração de cada um e concretiza-se nos vários espaços de influência e poder de que todos dispomos. Um trabalho que exige diálogo, projectos em comum, colaboração em rede. Se foi a “rede” que gerou esta crise é em “rede” que vamos vencê-la, tendo presente a sentença evangélica de que não é possível “colocar vinho novo em odres velhos”.
As comunidades eclesiais são especialmente chamadas
- a testemunhar os valores de “um reino de verdade e de vida, de santidade e de graça, de justiça, de amor e de paz” (GS 39) e a convicção de que “a «cidade do homem» não se move apenas por relações feitas de direitos e de deveres, mas antes e sobretudo por relações de gratuidade, misericórdia e comunhão” (CV 6),
- a ser voz das vítimas de injustiças silenciosas e silenciadas (cf. JM 20),
- a estimular espaços de debate e de consciencialização da gravidade da situação e da necessidade de uma conversão de mentalidades e atitudes.
Saibamos, pois, ser exigentes na ética, connosco e com os outros, e ser solidários com aqueles que necessitam. Sejamos os construtores do futuro, norteados pelo sentido de justiça e de paz que o Verbo de Deus inscreveu em cada um de nós.
“Soou a hora da acção. Estão em jogo a sobrevivência de tantas crianças inocentes, o acesso a uma condição humana de tantas famílias infelizes, a paz do mundo e o futuro da civilização. Que todos os homens e todos os povos assumam as suas responsabilidades” (PP 80).

Coimbra, 17 de Junho de 2010

Abel da Conceição dos Santos Pinto
Alberto Lopes Gil
Carlos Alberto das Neves Joaquim
Carlos José Rodrigues de Paiva
João Luís Pereira Soeiro de Campos
José António Henriques dos Santos Cabral
José Dias da Silva
Maria Teresa dos Reis Pedroso de Lima Oliveira