"Portanto, nós temos tudo, mas há uma dificuldade que não conseguimos mesmo ultrapassar, uma maldição: não conseguimos escapar à nossa ligação com os pobres.
Nós precisamos dos pobres. Sem os pobres para apanharem a fruta das árvores, para tratarem do excremento debaixo da terra, para darem banho aos nossos bebés no dia em que eles nascem, nós não poderíamos existir. Sem os pobres para fazerem o trabalho horrível, nós gastaríamos as nossas vidas a fazer o trabalho horrível. Se os pobres não fossem pobres, se os pobres fossem pagos da maneira que nós somos pagos, nós não nos poderíamos dar ao luxo de comprar uma maçã, uma camisa, não nos poderíamos dar ao luxo de fazer uma viagem, passar uma noite numa pousada numa cidade próxima. Mas o horror é que os pobres crescem por todo o lado, como musgo, como erva. E nós nunca podemos esquecer o tempo em que eles eram donos da terra. Nunca podemos esquecer a morte das famílias deles, aquelas juras de vingança gritadas tão alto naquelas salas cheias de sangue e tripas. E os pobres não esquecem. Alimentam-se da raiva. Comem raiva. Querem erguer-se e acabar connosco, limpar-nos da superfície da Terra o mais rápido que puderem.
E portanto, no nosso mundo congelado, no nosso mundo calado, nós temos de falar com os pobres. Falar, ouvir, clarificar, explicar. Eles querem uma mudança. E portanto nós dizemos, Sim. Mudança. Mas não uma mudança violenta. Nada de roubo, nada de revolta, nada de vingança. Em vez disso, dêem ouvidos à ideia de uma mudança gradual. Uma mudança que vos ajude, mas que não nos afecte. Moralidade. Lei. Mudança gradual. Nós explicamos isso tudo: um contrato com duas partes: nós damo-vos coisas, muitas coisas, mas em troca vocês têm de aceitar que não têm direito a simplesmente tirar aquilo que querem. Nós vamos dar-vos coisas maravilhosas. Sentem-se, esperem, não tentem agarrar. – A coisa mais importante é ter paciência, esperar. Nós vamos dar-vos muito muito mais do que vocês conseguem ganhar agora, mas há certas coisas que têm de acontecer primeiro — são estas as coisas pelas quais temos de esperar. Primeiro, temos de fazer mais e produzir mais, para que haja mais disponível para nós darmos. De outra forma, se nós vos damos mais, ficamos com menos. Quando fizermos mais e produzirmos mais, todos podemos ter mais - parte do aumento pode ir para vocês. Mas a outra coisa é, assim que haja mais, temos de garantir que a moralidade prevalece. A moralidade é a chave. O ano passado, fizemos mais e produzimos mais, mas não vos demos mais. Todo o aumento ficou para nós. Isso foi errado. Aconteceu a mesma coisa no ano anterior, e no ano antes disso. Temos de convencer toda a gente a aceitar a moralidade e, no próximo ano, dar-vos parte do aumento.
Portanto temos todos de esperar. "
(Wallace Shawn, A Febre, cit. por Jacinto Lucas Pires, col. Dar voz aos pobres para erradicar a pobreza, CNJP)
segunda-feira, 23 de agosto de 2010
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